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Em cada fim há um começo


Em cada fim há um começo, assim foi intitulada a emocionante reportagem conduzida pelo repórter José Gabriel Quaresma para a TVI de Portugal sobre o trabalho da Fraternidade Sem Fronteiras na África. Em um lugar onde tudo tem começo na fome um raio de luz vem trazer a esperança. É a Fraternidade Sem Fronteiras que está transformando a realidade de pessoas amadurecidas pelo sofrimento. Hoje a gratidão e a esperança são o significado no sorriso de cada um por tudo o que têm recebido. É a "linguagem do coração" alimentando a a crença em condições melhores e dignas, transformando as vidas de quem recebe e de quem doa.

Abaixo o texto que conta toda a história desde o início:

A matéria abaixo foi extraída deste link.

Fome. A fome vem sempre no começo.

É disso que trata o amor, o coração.

A condição humana, na sua dignidade própria.

Dez dias que mudaram um pedaço de um mundo, pobre, seco, rude, mas digno, corajoso, feliz, combatente. Sobrevivente. Vivo. Que sorri e sente.

Durante dez dias, sem alternativa, vivi a minha própria reportagem.

Vivi-a por dentro, até ao último momento.

Não fui actor, mas fui personagem acidental.

Comi, bebi, cheirei, chorei, corei muito, ri, ri muito, caminhei, ajudei, comprometi-me, abracei, abracei muito, corri, dormi, tomei banho, fui picado pelos mesmos mosquitos que picaram o resto dos meus companheiros, a caravana inteira, durante dez dias intensos e emocionantes, marcantes e felizes.

Transformadores.

Duros, muito duro, por isso, um ensinamento, sobretudo por todo o resto, que foi tanto.

Todas as palavras que leu, no primeiro parágrafo deste texto, são aquelas que trago no meu bloco de notas, guardado junto ao meu coração.

É com elas que resumo esta aventura, profissional, pessoal e, até espiritual.

Uma caravana de 40 pessoas, numa das zonas mais pobres do planeta. Todos voluntários, até eu e a equipa brasileira, com quem trabalhei e vivi, amigos dos sérios.

Dez mil crianças, muitas, a maioria infectadas pelo HIV, órfãs, por isso mesmo.

Confesso que não estava preparado para o que ia viver, intensamente, durante esses dez dias, apesar de me ter preparado. Mas, não.

Vi-me envolvido num processo de transformação interior imparável.

Pela primeira vez, em 25 anos de carreira, foi-me impossível ser apenas jornalista.

Creio até que teria sido uma opção, não tivesse sido um dever.

A culpa não foi minha, como se a culpa fosse essa. A culpa pertence à humanidade que se permite conceber vidas tão impossíveis, tão cheias e belas, simultaneamente.

Há homens bons.

Foi por aqui que fui, durante dez dias.

Não tive opção, que não fosse viver a minha própria reportagem, na pele, na alma, no coração.

Fui eu e ele, ao mesmo tempo.

E, ainda bem.

A viagem começa aqui...

Era uma vez uma amizade suspensa e separada por um oceano.

O Gil Moura, conheci-o há um quarto de século – é fazer-lhe as contas -, construímos uma amizade fraterna. Éramos quase irmãos, mas um dia o Gil Moura decidiu voltar ao Brasil.

Foi o advento do Facebook que voltou colocar-nos no caminho um do outro. No aeroporto de Maputo. Ele via Joanesburgo, eu directo de Lisboa.

Sim, fiquei admirado, apesar de tudo, com o seu convite:

Viajar até Moçambique, a convite da ONG Fraternidade Sem Fronteiras (FSF), para acompanhar uma das muitas caravanas anuais, pela província de Gaza, nas aldeias mais pobres de todas as aldeias pobres.

Levou-me, a brisa, muitos anos lá atrás, no momento em que passei a porta do aeroporto, e toquei África, de novo, com o meu rosto.

Um dia, no bairro Alto, já lá vão muitos anos, disse-lhe assim: “Gil, um dia vou fazer televisão, como tu”.

A caminho de Chokwé, já com Maputo lá atrás, ele recordou como me respondeu: “Gabs, tu és da televisão!”.

Tínhamos acabado de nos reencontrar, um abraço prolongado, como irmãos, e se isso era fantástico, o facto de irmos trabalhar juntos, numa Grande Reportagem/Documentário, ainda por cima com um tema como aquele, era algo inimaginável, mas real, a partir dali.

Nunca antes tínhamos trabalhado juntos.

Ambos conhecíamos bem o trabalho do outro.

Juntando a forte ligação pessoal, ambos sentimos que podíamos estar a fazer a reportagem da nossa vida.

Eu senti. E, sinto, foi a reportagem de toda uma vida.

Nada que faça pagará tal aventura bonita.

E, foi assim que a vivemos, durante aqueles dez mágicos dias.

A meio da jornada juntou-se a nós o Diego, também ele chegado do Brasil. O Diego (Stravinsky) cedeu o equipamento ao Gil, para trabalhar comigo, mas juntou-se a nós, levado pelo mesmo espírito bom.

O Diego é também o homem do drone. É, sobretudo, um profissional de mão cheia, criativo, trabalhador, amigo.

Estava formado um trio de ouros.

As cartas estavam lançadas.

Repórter TVI - Em Cada Fim Há um Começo

Uma grande reportagem de José Gabriel Quaresma com imagem de Gil Moura e edição de João Pedro Ferreira.

Seguimos de Maputo para Chokwé num mini-autocarro.

Outros dois seguiam em caravana.

À frente o Toyota 4X4, que veio a revelar-se “O Salvador”.

A meio caminho entre a (ainda assim) fausta capital e as entranhas de Moçambique, parámos numa estação de serviço.

Descobri, logo ali, uma pastelaria, e deixei-me prender por um pastel de nata, um bolo de arroz e uma bica.

Eram umas quarenta pessoas, na caravana, mais os motoristas, talvez umas quarenta e cinco pessoas, prestes a viverem dez dias de intensa emoção, entrega, trabalho, amizade, partilha, afecto, tempo, em comunhão total.

Para onde íamos não havia televisão, não havia água quente, não havia refeições diversificadas, nem sequer máquina de tirar bicas.

Para onde íamos, não havia casas (como as nossas), iluminação (como a nossa), nem ruas asfaltadas (como as nossas).

Para onde fomos, por muito incrível que pareça, havia rede móvel, internet.

Mas não dava para navegar. Não.

Apenas para aceder às redes sociais, ou para utilizar o whatsapp, que aprendi – aprendi tanto -, é uma eficaz ferramenta de comunicação.

Por incrível que pareça, havia internet onde falta a água, a comida, o afecto, a roupa, a educação, a saúde, a escola.

Por incrível que pareça, havia sorrisos, esperança, fraternidade, atenção, respeito, vontade. Havia até bolas de futebol e jogos sem fim, poeira levantada a cada remate de pé descalço.

Não havia outra forma que não a da comunhão total.

Até porque nem sequer conseguia sair dali, mesmo que quisesse. E, não queria.

Às portas da cidade de Chokwé, a caravana decide encostar.

Faz parte do roteiro parar ali para comprar fruta, que será servida no primeiro jantar, em Muzumuia.

Estamos quase a lá chegar.

Aproveitámos a paragem para mudar de viatura.

Seguimos no 4X4, precisava de chegar antes, para registar aquele que foi o momento mágico deste “tour” (pensava eu) pela pobreza extrema enfrentada com um sorriso e uns olhos muito abertos, de uma criança entregue a si própria.

A caravana abranda.

São umas quatro e tal da tarde, o sol queima, o calor é imenso, África, a caravana vira à esquerda.

Lá ao fundo uma espécie de quadrado, grande, quatro paredes de junco, quatro muros em cana.

Lá dentro, apercebo-me, há vida.

A estrada leva-me lá.

“Bem vindos a Muzumuia”.

Wagner Moura é um brasileiro normal.

Ele, como milhares de brasileiros, doa parte do seu tempo e de si, a ajudar. Há pessoas assim.

Nas favelas, nas ruas, nas escolas, há gente assim, diferente de mim, se calhar, diferente de si.

Aquilo, confidenciou-me a certa altura, não o preenchia.

Precisava de mais.

Mais que lhe enchesse totalmente o coração.

Quando conseguiu os primeiros 25 mil reais, nada mais o fez parar. Foi depois da primeira visita a Maputo.

Voltou para casa, abriu uma loja com o irmão, depois uma segunda loja, materiais de construção, e conseguiu o passaporte financeiro. África chamava por ele.

O Google mostrou-lhe um Moçambique fora dos postais e dos sites da internet.

Um Moçambique esquecido, deixado lá para o interior, isolado, a morrer, lentamente, à fome.

Era ali que ele queria estar. Era ali que ele tinha que estar.

Uma vez em Maputo, Wagner viu-se obrigado a mudar de hotel. Não estava a conseguir sair da cidade. Mudara-se para um hotel mais modesto, então.

Foi aí, que reparou, na manhã seguinte, no empregado que lhe servia o pequeno almoço.

Gentil, simpático, prestável, falava português.

Decidiu pedir-lhe ajuda.

Queria ir para o interior de Moçambique, para conhecer as aldeias mais pobres de todas, e ajudar as crianças órfãs do HIV. Milhões.

Encoste-se e engula em seco: em Moçambique há um milhão e oitocentas mil crianças órfãs, e 600 mil delas por causa do HIV.

Os pais morreram infectados. Todos.

Mas, o mundo gira ao contrário, como conta a história da criança que ficou sem o pai e sem a mãe, devorados por um crocodilo, suprema ironia. Ainda lá estão as marcas, junto ao rio, dizem-me.

Consegue imaginar 1 milhão e 800 mil crianças órfãs, a maioria sós, famílias de crianças, 600 mil infectadas com o HIV?

Eu consigo. Eu vi, eu abracei, eu escutei, eu falei, eu senti, eu consigo.

Wagner Moura, juntamente com Armando, o empregado de mesa, visitou a aldeia da Barragem, em cima do rio Limpopo, no dia seguinte.

Ali conheceu Dorita, uma mãe negra, com um coração do tamanho de África inteira.

Barragem fica na margem do rio, é uma aldeia extremamente pobre, onde os restos de Portugal descansam em cima de ruínas com traço colonial.

As estradas são mar de lama, não chovia há anos, tinha chovido, dilúvio, semanas antes, antes, onde tudo era amarelo e seco.

Com Dorita e Armando, Wagner viu, sentiu, tocou a realidade mais crua de todas, a pobreza extrema, a fome, para lá do limite.

Visitou casa-a-casa, família-a-família.

Regressou ao Brasil.

Oito meses depois aterra, de novo em Maputo.

Junta-se a Armando e Dorita, compra tudo, mas rigorosamente tudo o que é necessário, até tinta, sem que houvesse uma casa para pintar e, da Barragem desce a Muzumuia. Uma hora e tal mais próximo de Chokwé. A meio caminho.

Começa aí e assim a construção do primeiro campo de acolhimento para crianças. Wagner previa dar apoio a 35 jovens.

Apareceram 70.

Em sete anos, de Muzumuia partiram outras sementes, e actualmente, são já vinte e um campos de acolhimento, e dez mil crianças apoiadas, assombradas pelo fantasma da fome, que morreu lá atrás.

Mais e tanto como a fome, o amparo, o abraço, a verticalidade, o ser-se humano, como eu vi.

Agora, também os mais velhos são amparados, e os jovens, e os estudantes.

No começo era a fome.

E, foi aqui que chegámos.

Nos primeiros dois dias não consegui comer.

Os meus padrões ocidentais não o permitiam.

O Gil disse-me isso mesmo: “Bro, esquece os padrões, senão você não sobrevive. Entra na realidade daqui. Não tem como saltar fora”.

Mas, os meus padrões ocidentais obrigavam-me a não desperdiçar a comida, que misturava, simulando estar a comer. Um dilema chocante.

Ali, sentado à mesa, em Muzumuia, horas depois de ter chegado, sentado a fingir que comia, levanto o olhar e pasmo.

Ali mesmo, à minha frente, Mafala, uma estátua negra, olhos enormes, olhava para baixo, mas não era o prato que via.

Não sorria. Na verdade, Mafala também não comia.

Mafala apanhou Malária quando tinha três anos. Uma transfusão de sangue (em Moçambique o sangue é pago) infectou-a com o vírus do HIV.

Mafala vive com a mãe, deficiente.

Mafala foi o meu primeiro banho de humanidade na terra africana.

Ela estava ali, à minha frente, sentada, porque as estrelas quiseram que o meu primeiro e maior banho de humanidade fosse logo na primeira noite.

Mafala pegava nas coisas que alguém pedia, o pão, por favor, com uma doçura incomensurável, incontável, como o brilho dos seus olhos grandes.

Foi-me fácil perceber que estava infectada com o HIV, ela possui – ainda – traços que o denunciam.

Estiquei-lhe a mão. Agarrou a minha. Sorri-lhe. Levantou o olhar. “Posso tirar-te uma foto?”.

Abanou a cabeça afirmativamente. “Vá, um big smile, por favor”, pedi-lhe a rir-me, como eu costumo rir.

Aquela figura negra e bela, que antes fechava o sorriso e o olhar, encheu-se de luz, olhou-me com a maior alegria que alguma vez presenciei, mostrou-me os dentes, lindos, brancos, brilhantes e eu tirei a foto.

Guardo-a na memória.

Pela primeira vez toquei num anjo, em corpo de menina.

Ajoelhei-me ao seu sorriso.

“Não existe revelação mais nítida da alma de uma sociedade do que a forma como trata as suas crianças”.

Esta citação de Nelson Mandela podia muito bem ter sido escrita, há uns anos, pelo Luís, que ainda ontem me mandou um whatsapp, podia ter sido escrita com o dedo, na areia, no chão, como faziam as crianças de Chicualacuala.

Era assim há uns anos, antes da Fraternidade Sem Fronteiras chegar, pela mão do brasileiro simples, que acredita que consegue mudar o mundo.

Não o mundo inteiro, mas o mundo de alguém.

Luís é o segundo menino deste projecto, que cresceu, comeu, estudou, e que agora vai entrar na universidade.

Ele quer ser doutor, de medicina, e já imaginámos como será o dia da licenciatura.

Luís será o segundo menino/jovem do projecto, a entrar na faculdade, sete anos depois do começo (ao abrigo do apadrinhamento jovem – a ONG funciona sobe o sistema de apadrinhamento, criança, idoso, jovem, estrutural, escolar, universitário, cada padrinho paga 15 euros por mês para a criança, garantindo-lhe assim o presente, o futuro.)

No último dia da aventura, a caravana foi informada que a Esperciosa tinha acabado de entrar na universidade. O Luís vai a seguir.

Estes dois jovens, há sete anos, estavam obrigados a deixar os estudos, porque a escola seguinte era numa outra aldeia.

Heróis como milhares que conseguiram conjugar a dureza da machamba, com a gentileza dos livros e da escrita.

Conseguiram, e são os primeiros “meninos” órfãos, a entrar na universidade.

Ninguém esquece o caminho que fez.

Em Muzumuia fomos recebidos pelas crianças da aldeia, que sonham com a vida, recebidos com cânticos e danças de lá, como que dentro de uma caixa mágica, enquanto o mundo continua, do lado de fora.

Foi uma espécie de tiro de partida. Dali para a frente foi inquietude, incredibilidade, híper realidade, união, bondade, choro de crianças, mas tanto amor espalhado.

Depois do primeiro (não) jantar, em Muzumuia, com Mafala a sorrir-me, como a lua por cima da grande árvore, nada mais seria como alguma vez eu pensasse que pudesse ser.

O mundo ao contrário.

A minha primeira noite na tenda comunitária foi assim como que meio dormente, uma experiência estranha, eu explico:

O cansaço era enorme, tinha acordado em Portugal há umas 35 horas. Mal raciocinava. Só queria deitar-me.

O conforto de casa estava a uns quase dez mil quilómetros de distância. A zona de conforto.

Os mais prevenidos levaram redes-mosquiteiro, lençóis, cenas. Eu, zero.

Aquele era o nosso hotel, cheio de estrelas que se viam por entre a lona que servia de tecto.

Decidi dormir sem nada por cima, tudo o que eu tentasse abafava-me e derretia-me, naquele calor que se entranha, húmido.

Enchi-me de repelente, fiquei repelente, colante, gorduroso, seco.

Improvisou-se uma umas tomadas, imediatamente ocupadas com carregadores de smartphones.

Improvisou-se, de novo, e lá conseguimos ligar duas ventoinhas, ventiladores, como diziam os meus companheiros de tenda.

Um desses ventiladores parecia um heli a aterrar ali mesmo no estreito corredor que atravessava as duas filas de beliches, em cima do chão de terra alaranjada.

Entre aquelas quarenta pessoas, era o único que falava português, de Portugal.

No final, já misturava com português, do Brasil, com moçambicano, com Muzumuia, um dialecto que o Gil inventou, numa noite de confidências: somos um só!

O dialecto do coração.

Há, depois, aqueles elementos que se chamam mosquitos. Grandes e pequenos, de todos os tamanhos e perigosidade.

Gastei dois frascos de repelente, em dez dias.

Zero, valeu-me de zero. Não houve uma única noite, no fim já lhes tinha ganho carinho, também.

Ao quarto dia já lhes tinha ganho a confiança, mas abusaram, e vieram mais, e mais, e mais.

Dormi o que tinha que dormir e me deixaram dormir, quase nada.

Lembro-me, era perto das cinco da manhã.

Toda a gente dormia, no centro de acolhimento e na aldeia, todos faziam silêncio, até os grilos e as cigarras, toda a gente menos eu.

A mala estava húmida, pingava-me orvalho em cima dos ombros.

Vesti os calções, calcei os meus ténis (a Danielle dizia que me davam um ar carioca, juntamente com os óculos espelhados. Tomei sempre como um elogio), liguei o iPhone que já não tenho, na minha playlist e olhei o céu.

Fogo, cor de fogo, a nascer.

A aldeia, ali mesmo, a terra encarnada, a vegetação rasteira, as árvores gigantes, as vacas, as cabras, as galinhas, o céu, fogo.

Fiz-me à aventura.

Um acto litúrgico, a celebração do nascer, como são todas as minhas corridas. Experiências, vivências, conhecer.

Corri entre os caminhos desenhados pelas mãos grossas, fui escutando a aldeia a acordar, admirei a alvorada na savana, tudo em meu redor, até que me perdi.

Estava agora na estrada mal asfaltada. Os buracos, crateras, não deixavam vislumbre de alcatrão, por causa das grandes chuvadas.

As mulheres caminhavam, em fila, para a machamba.

Serpenteavam o horizonte.

O sol tinha nascido, o calor começava a mostrar-se, chegava rapidamente.

Passavam Chapas em direcção a Chokwé (carrinhas de vários lugares que transportam pessoas) e os I Love You (carrinhas de caixa aberta que transportam pessoas, que se agarram umas às outras para não caírem, daí o nome Love You).

Passavam e olhavam estranhamente para mim.

Os Chapas iam apinhados de gente, os I Love you, passavam mais apinhados ainda, são mais baratos.

Fui levado, de volta a Muzumuia, por um miúdo que por ali vagueava, cajado numa mão, esperança na outra. Chegou do nada.

Eu, ele e o seu cão, atravessámos a aldeia, respondemos com sorrisos aos bons-dias que todos nos davam.

O dia tinha nascido, ali, em frente aos meus olhos.

Que momento belo.

Como gosto de conhecer as coisas, as terras, as pessoas, as alvoradas, enquanto corro.

Chegado ao centro de acolhimento despedi-me do meu companheiro ocasional, ofereci-lhe água, fresca, e uma camisola da selecção portuguesa, que tinha levado para correr.

Demos um abraço, fiquei sem saber se ele era um daqueles muitos miúdos pastores, sem gado para pastar, apenas com o seu cão como companhia.

Dormi o que faltava, a seguir, já sem muitos mosquitos por perto. O dia tinha nascido.

O dia há muito que tinha começado.

Cheguei ao “café da manhã”, em último.

Ganhei um bom-dia, arrastado na doce tonalidade brasileira, e imensos sorrisos.

Contudo, estranhamente, não acordei “enresinado”, como habitualmente.

Acordei (?) feliz.

Comi um pão com manteiga e bebi uma chávena de café quente.

Sabia que ia ser a minha única refeição durante o dia.

Ainda não tinha conseguido libertar-me do meu próprio padrão de vida. Haveria de lá chegar.

O pão é feito em Muzumuia, todos os dias, na padaria comunitária, que tem no cota João (é da minha idade, 47 anos) o gerente mais esmerado, o professor mais aplicado.

A FSF quer construir mais padarias, nos outros centros de acolhimento, e repetir a fórmula.

João vivia na aldeia da Barragem. Trabalhou a vida inteira no campo, duro, vergado à crueldade da machamba.

Foi vendo, João, como os outros faziam, até que um dia decidiu meter as mãos na massa, literalmente, e começou a fabricar o seu próprio pão.

Foi quando o padeiro da aldeia emigrou para a África do Sul.

Foi Dorita quem o apresentou a Wagner.

As máquinas vieram do Brasil, João assumiu a padaria comunitária, e hoje, mais de uma dúzia de miúdos aprendem e aprenderam a fazer pão.

Eu chamava-lhes “os padeirinhos”.

O primeiro dia em Muzumuia foi passado assim, a conhecer o centro de acolhimento, as salas de aulas, as aulas com as crianças, os encontros, a padaria, a sala dos mantimentos, a cozinha ao ar livre, o terreiro mágico, onde vivem as árvores maiores que alguma vez vi, sendo que uma das tarefas era servir o almoço às crianças, que saíam das aulas, e que mais tarde iam ser as estrelas da companhia, no momento das doações.

Roupas, brinquedos, bolas de futebol, pasta e escovas de dentes, tudo fazia brilhar ainda mais aquelas centenas de olhos carregados de esperança.

Meninas de quatro anos que dançavam enquanto seguravam o vestidinho novo, colado à frente do seu corpo.

Coisas do nada, que são tanto, ou aquele menino que arranjava o chinelo com uma grande agulha e linha preta, sentado na roda de um gerador.

Até a noite cair passeámos pela aldeia, pelos caminhos por onde eu já tinha corrido, manhã cedo.

Visitámos crianças, idosos, o poço, que onde há água há vida. E, há vida em todas aldeias onde estivemos. E, morte. Mas, pouca água, às vezes nenhuma.

À noite, todos nós, sentámo-nos, numa roda gigante, junto à maior árvore de todas.

Estava na altura de partilhar.

Voltamos a repetir o momento, na véspera da partida para casa.

Havia duas pessoas que estavam (ainda) desconfortáveis, embora o esforço de adaptação fosse tremendo.

Eu e o Mário éramos essas pessoas.

Confessámos, perante todos.

Fomos aplaudidos.

Nessa noite dormi melhor, com mosquitos e tudo.

Era sábado.

Fim de uma semana.

Partimos de Muzumuia por volta das oito da manhã.

Às cinco e meia já tinha tomado o meu banho com água fria, que aqui não há esquentadores, juntamente com uma série de seres da classe das baratas gigantes. Por esta altura já eram íntimos.

Às sete tomei o “café da manhã”, já que dizer pequeno-almoço fazia confusão aos meus companheiros.

“Até faz sentido, um primeiro almoço, o primeiro do dia”, disse-me uma vez o Gustavo.

Partimos em direcção a Chimbembe, que aqui os lugares têm nomes estranhos, bom, nem todos, como mais à frente se verá.

Na aldeia de Chimbembe fomos recebidos pelos mais velhos, pelas mulheres e pelas crianças, por esta ordem.

No primeiro momento em que pisei Muzumuia, pensei que aquilo que ia ver e viver não ia muito além do que já tinha visto.

Estava totalmente enganado.

Um dia cada vez mais forte que o anterior.

Em Chimbembe o que mais me deixou desconfortável foi a forma como os homens velhos faziam sentir a sua presença.

Estávamos sentados num terreiro, debaixo de uma árvore (habitue-se a esta imagem, um terreiro, árvores que nos abrigam do sol e do calor, crianças, muitas crianças), porque a apresentação cultural fazia parte da visita.

Durante quase duas horas, miúdas e miúdos dançaram para nós, mulheres também, enquanto um velho, de olhar louco e vermelho, batia sem fim, num tambor feito de pele de vaca.

Senti o demónio ali, junto a mim, pela forma como batia o seu tambor, pela forma como transpirava, como olhava as crianças e lhes dava ordens, com o olhar, com os gestos bruscos do batuque. Tum, tum, tum...

As crianças foram servidas pelos caravaneiros.

Frango, arroz e feijão. Foi assim durante onze dias.

A caravana médica e dentista procedeu à escovação dos dentes das crianças e a pequenos atendimentos e, impressionou-me ver meninos a chorar, por causa do sabor da pasta de dentes.

A higiene oral é extremamente importante para estas crianças, são quase dez mil.

Hoje, elas comem um prato de comida, por dia, pelo menos.

Antes, há apenas sete anos, elas não comiam, ponto.

Os dentes não ganhavam cáries, sequer, eles caíam inteiros, amoleciam e caíam.

As gengivas e a estrutura óssea, desnutridas, provocavam dores inimagináveis.

Hoje, hoje vê-se quase todos os miúdos e jovens a escovar os dentes.

Os dentistas da caravana fazem por garantir que assim é, e ensinam os mais pequenos, e as mães.

Às vezes fazem-no através de pequenas peças teatrais, com fantoches.

Antes do regresso a Muzumuia fiz as minhas primeiras entrevistas, para a reportagem que me levou a Moçambique.

Entrevistei uma menina-mulher.

Comovi-me, no fim. Ela também.

O marido deixou-a, partiu para Maputo.

Ela, chama-se Elisa, ficou sem futuro, sem chão.

Foi no chão, ali, em cima da esteira, debaixo da árvore, que me confidenciou que hoje é feliz.

O dinheiro que a Fraternidade Sem Fronteiras (FSF) lhe paga pela sua actividade de monitora no centro de acolhimento de Chimbembe, um dos vinte que já existem, não lhe dá para aventuras.

Chega para comprar (pouca) roupa para o filho, material escolar, para lhe dar comida, pouco mais, mas como isso é quase tudo, ela é feliz, agora.

E, continua a sonhar.

Sonha em ter a sua própria casa, porque já tem um terreno, uma casa onde possa construir um quarto para o filho, e lhe possa dizer: “É aqui, o teu quarto, a nossa casa”.

Depois de desatar o nó na garganta, terminei a entrevista e comecei outra, logo de seguida.

Amanda é médica, brasileira, bonita.

Foi integrada na caravana da Fraternidade Sem Fronteira, voluntária, como todos.

Acho que chorámos entre cada resposta, antes de cada pergunta.

Ensinou-me tanto naqueles dez minutos.

Amanda é cardiologista.

“Eu sou médica há muitos anos. Aqui, aprendi a ter acesso às pessoas, pelo coração.

Já não vejo um paciente pelas suas dores, vejo-o pelo todo”.

Amanda personifica a transformação por que passamos quando caminhamos naquela terra.

“Levamos muito mais do que damos. Na minha primeira vez aqui fui visitar a casa do meu afilhado. Fui conhecer a sua família. No final da visita, a mãe deu-me um presente”.

Amanda ensinou-me, naquele momento, a lição da bondade.

“Aquele presente era o mais valioso daquela família. A mãe ofereceu-me uma galinha, no final da minha visita”.

E, voltamos a chorar, ela sentada em frente a mim, em cima da mesma esteira, por baixo da mesma árvore.

Voltámos a casa.

A caravana participou num encontro ecuménico, ao fim do dia. À noite, o jantar era colectivo.

Deitei-me a dormir, mal cheguei à base principal, em Muzumuia.

Só acordei a meio da noite, massacrado pelos mosquitos.

Como sempre, deambulei, e aproveitei para reflectir na vida, enquanto o dia não nascia de vez.

Os domingos são iguais, esteja onde estiver.

Já estive em dezenas de países, de cidades, em todo o mundo.

Aquela ambiência é sempre igual em qualquer parte.

O amanhecer, a tarde, a chegada da noite.

Em Muzumuia, espantei-me, também é como nos sítios por onde passei, como em casa.

Mal o dia espreitou, já eu me apressava a sair o portão do centro, rumo a mais uma corrida pela aldeia.

A partir das quatro da manhã deixei de dormir, por causa dos mosquitos e da humidade, o “café da manhã” era às sete.

Tinha umas duas horas só para mim, como gosto.

Às oito saíamos para Matuba.

Os caminhos da aldeia era-me agora familiares.

As coisas começavam a ser-me familiares, até aquelas gotas de orvalho que me pingavam nos ombros, desde o cimo da tenda.

Até mesmo a terra, nos dedos dos pés e nos chinelos, que naquele hotel era assim.

Para a frente eram 500 metros, mais 500 para trás, um quilómetro. Fui, vim, voltei e fui.

Voltei à direita para fazer mais quinhentos, ir e vir.

Trocava bons-dias com as meninas que lavavam a louça do pequeno almoço, nos alguidares, com os homens que varriam as folhas do terreiro, com as mulheres que estendiam a roupa ou davam comida às galinhas.

Parecíamos vizinhos, Muzumuia parecia o meu bairro, a minha aldeia.

Sinto alguém perto de mim.

Olho, um miúdo, uns sete anos, corria a meu lado. Sorria-me.

Estiquei-lhe a minha garrafa de água. Parei. Parou. Liguei a câmara fotográfica.

Sorriu de novo.

Liguei-me ao Facebook, em directo, seis da manhã, Muzumuia, eu, a correr, com ele.

Pouco depois mais um menino se juntou a nós, e uma menina, e outra e outro e outro e corremos todos juntos aldeia adentro.

Certo que jamais me perderia, a não ser naquele momento inédito e exclusivo. Belo e feliz.

No fim, eram uma dúzia.

Tirámos uma foto. Dei-lhes água e fruta.

Fui tomar o meu banho frio, que eram quase sete da manhã.

Tomei banho enquanto ouvia Bob Marley e o as pessoas acordavam, as pessoas e os animais.

Ainda me encostei uma meia hora, no meu beliche desprovido de tudo, antes de partir para Matuba.

Era o meu quarto dia em Moçambique, no meio da pobreza mais extrema e mais digna com que alguma vez me confrontei.

Nos primeiros três dias vi coisas diferentes e impactantes, todos os dias. O resto dos dias até ao último.

E, em Matuba também era domingo de manhã.

Como no meu coração.

Os domingos de manhã apertam-me o coração, quando estou longe, embora me afaguem a alma, a minha alma sente-se reconfortada ao cheirar a fresca brisa de domingo.

Matuba recebeu-nos com sol.

Como em todas as aldeias onde estive, à nossa chegada, os meninos estavam todos sentados em baixo das árvores, centenas de meninos, muitas árvores, em todas as aldeias, arrisco-me a dizer, sem estatísticas, diz-me o que senti lá, que deve haver uns cinco meninos para cada jovem e uns dez para cada adulto. E metade disso em árvores grandes.

Impressiona.

Impressiona saber que quase três mil famílias são constituídas por meninos que cuidam de meninos. Eles são adultos à força.

Quase três mil famílias de meninos, em Moçambique, órfãos por causa do HIV.

Em todas as aldeias que visitei encontrei meninos infectados.

Não que fosse visível, mas eu estava por dentro, a viver os mesmos dias que eles, sabia, diziam-me.

Matuba tem uma escola do governo, uma estrutura física, bem entendido, uma casa.

Também tem um professor do governo. E, uma casa, com água e conforto mínimo, mas isso é para o chefe da aldeia. Pertence ao representante do partido governamental.

A Fraternidade Sem Fronteiras faz diferente, aqui – como em outras aldeias -, os voluntários fazem chegar à aldeia a ajuda diária, o que permite que os meninos possam frequentar a escola, porque comem. A fome, no começo.

Confessou-me o professor, que os meninos não iam à escola, ali mesmo, na aldeia, porque não comiam, não tinham força, e ainda tinham que pastar o gado ou trabalhar na machamba, a troco de nada.

Orgulhoso, o professor contou-me que, depois que começaram a receber um prato diário de comida, começaram a frequentar a escola e as taxas de abandono baixaram drasticamente.

O chefe da aldeia explicou-me em rigor qual a sua função.

Contava-me, num discurso humilde, mas firme, junto aos mais velhos, que nos observavam, que o trabalho feito no terreno pela FSF vai permitir que estes meninos transmitam os valores aos outros, até que um dia, acredita ele, eles possam ser independentes e seguir este mesmo caminho.

Lá ao fundo, o professor, que escutava o chefe da aldeia, sorriu e olhou-me, pensava em como o mundo também pode ser bonito.

Foi com esta imagem que voltei para Muzumuia, de jipe.

A meio do dia separei-me da caravana e segui, com o Gil, com o Wagner e com o Belmiro, nos comandos, rumo a Chokwé.

A caravana partira pouco depois para Muzumuia.

Em Chokwé estava combinado apanhar o Diego.

O Diego tinha acabado de chegar do Brasil.

O Hipólito foi buscá-lo ao aeroporto de Maputo, e aguardavam por nós na bomba da Galp, na avenida principal de Chokwé, a cidade a poucos quilómetros do nosso filme, rodado em Mzumuia, onde se fala dialecto do coração.

Diego, amigo do Gil, é dono de uma produtora que colabora com o Discovery, BBC, Al-Jazeera, entre outras.

É um brutal profissional, revelou-se um camarada único, entrou no espírito, desde o primeiro segundo. Ainda por cima fala quando dorme, estranhos dialectos.

Fala, que eu ouvi.

Foi em Maputo, na última noite, aquilo parecia o demo, num corpo gigante, assustei-me, tive até medo que viesse direito a mim, qual monstro que grunhe. Não havia Muay Thai que me salvasse.

Mas, não, limitava-se a falar estranhos dialectos.

É uma doença, contou-me ao pequeno almoço. Creio que se chama Parassonia. É inofensivo.

O Diego foi o boost que nos faltava. O homem do drone.

Seguimos para Machanganhane, o sítio mais mágico do mundo.

Pelo caminho li uma mensagem de uma amiga: “os melhores pregos de Moçambique são aí, ao lado das bombas da Galp”.

“Acabei de sair de lá”, respondi.

Só mais tarde dei a devida importância à informação que me era acabada de dar, numa curta passagem pela civilização.

Machanganhane ficava a uma hora de caminho de Chokwé, quase a mesma distância para Muzumuia.

É um dos três distritos onde a FSF opera as suas actividades, na província de Gaza.

Um caminho sem retorno.

O jipe ficou estacionado no posto de abastecimento.

Seguia-mos dentro de um mini-bus. Eu, o Gil, o Diego, o Mário, o tal deslocado, como eu, o Wagner e o Almirante, o nosso motorista, nesta ocasião.

Ao Belmiro contei que era um dos homens mais ricos do mundo, o Azevedo, o do meu país.

Ao Almirante expliquei que só ele nos podia conduzir aquele lugar mágico, nunca um oficial superior, apenas um oficial general o podia fazer. Não sei se percebeu.

Um pouco mais à frente entram duas mulheres, uma nova, uma mais velha, mais gorda, mais faladora. Falava alto, mas era divertida. Pegou logo conversa com o moreno do Gil.

Acho que trabalha para o governo.

Entra o Osvaldo, vim a saber mais tarde, ele é o coordenador daquele distrito da FSF, a outras é Dorita (Muzumuia) e o outro é Armando (Chicualacuala).

Mal entrou no autocarro, Osvaldo ficou o Mr. Smile, para os amigos.

A mulher mais velha falava muito, aos gritos.

O Gil jogava ao primeiro toque.

Todos, mentalmente, montávamos um esquema para nos livrar delas, antes do destino final.

Estávamos prestes a conhecer a primeira família de crianças, órfãs há cinco anos. Sós, desde essa eternidade toda.

Wagner Moura ia conhecer os chefes da aldeia, os mais velhos, e a partir desse momento, a FSF passa a operar naquela aldeia. Era um selar de um acordo. Estava previsto.

Atrasados, decidimos não jantar.

A aldeia ofendeu-se, que eu senti, mas terminada a tarefa regressámos á base.

A estratégia mental estava prestes a ser posta em prática.

“Almirante, pare aí à frente. As senhoras seguem até à escola, nós saímos aqui, e depois vamos lá ter a pé”, disse Wagner.

Nós queríamos chegar sozinhos onde tínhamos que chegar.

Estávamos prestes a cair de joelhos no chão, aterrados, mas o que aconteceu, no fim, foi seis homens abraçados, a chorar como crianças, em frente a crianças que já não choram.

Estávamos ali, num pedaço de terra parada no tempo.

Entrámos mato adentro, caminhámos normalmente, enquanto conversávamos.

Eu tinha dito à minha mulher, antes de partir, que ia apadrinhar uma criança deste projecto.

Ambos sabia-mos que tinha que ser uma criança que aparecesse do nada.

E, lá estava ele, escondido, no meio da vegetação, pequenino, olhos assustados, virado para nós.

Um segundo.

Fugiu, assustado.

Vi-lhe a camisola azul, do super-homem, enquanto desaparecia da vista de todos nós.

Olhámo-nos.

Cerrámos os olhos.

Continuámos a caminhar.

Mr. Smile chamou um outro miúdo e perguntou-lhe em Changana:

“O teu irmão mais velho?”.

“Está ali, na estrada...”.

“Vai chamá-lo”.

De repente, em frente aos nossos olhos, Júlio, Agostinho e Carlos.

Três irmãos. Três meninos, sem tempo para serem crianças.

Órfãos de pais há cinco anos. Júlio tinha oito, Agostinho dois e Carlos um ano de idade.

Cinco anos sozinhos, sem ninguém, vivos, assustados.

Olhei os traços dos três pequenos grandes heróis que tinha ali à minha frente.

Antes de entrarem na casa, feita de lama e paus, recheada com uma esteira, dois cobertores, umas peças de roupas mais sujas que o chão de areia, e uma bola de futebol, fiz as entrevistas.

Era a única coisa em condições, ali dentro, aquela bola de futebol.

Eu não entrei. Não consegui.

Vi depois, quando visionei o material para o editar.

Antes de entrarem no abrigo dos três irmãos sós, os meus companheiros de jornada ajudaram-me a realizar a entrevista.

Foi uma das mais duras da minha carreira, acho que o Gil sente o mesmo. Todos nós.

Não a podia fazer da forma convencional.

Aqueles meninos-heróis tinham mais dignidade no olhar, que qualquer verdade jornalística exibe, não podia.

Osvaldo ficou encostado a uma árvore, que ali também há árvores, Wagner mais a seu lado.

O Gil posicionou-se, mais afastado, mais junto a mim.

Diego atrás de nós, com a outra câmara.

Havia uma grande distância desde a câmara até aos meninos.

Foi uma conversa, mais que uma entrevista.

Ainda hoje estou para perceber se eles sabiam que o Gil a estava a gravar.

Eu fazia as perguntas e Osvaldo traduzia.

A cada resposta de Júlio, os mais novos não entendem português, Júlio fala pouco, nós dávamos nós nas nossas gargantas, engolíamos em seco, sentíamos os corações a dilacerarem-se a cada olhar, rendidos a uma insignificância só nossa.

Ficávamos mais pequenos, a cada resposta.

Um irmão, que está na África do Sul ajuda-os, de vez em quando, que é quase nunca.

“Osvaldo, como vivem, então, os três, há cinco anos?”.

“Procuram restos, que os vizinhos às vezes lhes dão, há alturas em que passam dias sem comer”.

Já não era o nó na garganta, era mesmo o ar que nos estava a faltar, o chão que nos estava a fugir mesmo por baixo dos nossos pés. A mão termia-me.

“Pergunte-lhe o que é que ele mais quer”.

“Ir à escola”, foi o que respondeu.

“E, mais?”.

“Comida para ele e para os irmãos, e roupa”.

“Os pais morreram como e quando?”

Júlio percebeu, olhou-nos, sem esboçar um gesto, apenas mexeu os lábios.

“Há cinco anos. A mãe não sabe como morreu, o pai adormeceu e já não acordou, não sabe”.

Quando não se sabe, diz Osvaldo, é porque morreram por causa do HIV:

“O que é que o irmão mais pequeno lhe pede?”

“Pipocas, doces...”

Terminei a entrevista.

Fui ao autocarro buscar a mochila, tirei as bolachas, os iogurtes, a água, até as pastilhas elásticas, que tinha comprado na bomba da Galp, em Chokwé, e que iam ser a minha primeira refeição, naqueles dias inteiros.

Dei-lhes tudo.

Deram-me tanto.

Os meus companheiros entraram na casa dos meninos.

Tinha acabado de nascer uma ninhada de gatos.

Eu não consegui.

Apenas chorei, de costas, para que só a aldeia inteira me visse, eles os três não.

Era a maior lição de dignidade das nossas vidas.

Os homens também choram.

Abraçados, choram quando em frente da realidade da condição humana.

Foi, natural e de emotivamente isso que fizemos, quando os meus companheiros saíram da casa dos três meninos órfãos.

Ninguém consegui conter as emoções, a esperança.

Estava-mos em plena catarse emocional.

Aquele ponto na agenda de Wagner, naquele fim de tarde de domingo, tinha a segunda parte, o encontro com os chefes da aldeia, mas havia prioridades do coração.

Levados pela emoção selámos tudo ali mesmo.

A FSF tem um sistema de apadrinhamento das crianças, que não permite escolher a criança a apadrinhar.

É a organização que apresenta a criança apadrinhada ao padrinho, por esta escolhida e referenciada.

Fiquei a saber disso quando me voltei para Wagner e lhe disse que queria ser padrinho do pequeno super-homem, chamado Carlos, seis anos, órfão desde um ano de idade, há cinco entregue a si e aos seus irmãos meninos.

Não podendo apadrinhar Carlos ali mesmo, pedi então a Wagner que me autorizasse a ir a Chokwé, comprar comida, roupa, e outras coisas para aqueles meninos.

Não conseguia sair dali assim, não os consegui deixar.

Chokwé ficava a uma hora de distância. Era impossível, porque a noite ia cair.

Mário, o outro deslocado da caravana, como eu, pediu a Wagner para apadrinhar

Agostinho e Carlos. E, pediu para doar uma casa aos meninos.

A emoção era tamanha, que Wagner abriu uma excepção, permitindo que nos tornássemos ali mesmo padrinhos dos três guerreiros.

Eu tornei-me padrinho do Carlos, o Mário tornou-se padrinho dos irmãos.

A casa está a ser construída, custa uns mil euros.

A partir daquela tarde de domingo, três vidas sem nada no olhar transformaram-se em três vidas que se despediram de nós a sorrir. Sim, sorriram, no fim.

Dois dias depois, enquanto nós estávamos em viagem para junto do Zimbabué para visitar uma aldeia diferente de todas, a caravana voltou a Machanganhane, sem nós, pois estava previsto no roteiro irem conhecer os três órfãos do HIV, que vivem sozinhos, mas que já não estão sozinhos.

Rostos e corpos que materializam e humanizam aquelas quase três mil famílias de meninos. Afinal, eles existem.

Soubemos depois, uma das caravaneiras ofereceu a mobília e três camas para a casa nova. Para a casa.

Já em casa, na minha, em Portugal, como combinado, enviei uma mensagem a

Osvaldo, o nosso Mr. Smile.

Combinámos trocar mensagens uma vez por mês, um foto de Carlos e um ponto de situação.

“Osvaldo, esteve com o meu Carlos?”.

“Meu querido, estive lá, mas o Carlos não estava, deixei a comida, a roupa e os medicamentos com o irmão do meio. O Carlos estava na escola. Mando-lhe duas fotos”.

Sorri, chorei, respondi.

“Kanimambo, meu irmão. Cuide bem deles”.

Uma semana antes, nenhum dos três irmãos sabia sequer o que era a escola, apenas a conhecia pela palavra.

Uma semana depois, o meu Carlos já vai à escola, já tem comida, o Agostinho e o Júlio também.

Até pipocas e Pepsi.

São 50 Reais ( 15 euros ) que envio todos os meses, tão pouco para um tão belo milagre.

Carlos, o pequeno super-homem.

Por isso disse, ao início, que íamos viver o momento mais mágico das nossas vidas.

Agora Carlos tem um futuro. Agora, Carlos tem futuro.

Eu, sou imensamente mais feliz.

Voltámos a Mzumuia, mas pelo caminho parámos na bomba da Galp, em Chokwé.

Encomendámos nove pregos e nove cervejas.

Não comia há uns quatro dias.

Depois daquele fim de tarde transformador tinha mesmo que comer e recuperar energias, que parecia ter sido sugado pelo tempo.

A cara do meu Carlos é o fundo do meu iPad, do meu computador.

Assim vemo-nos todos os dias, mesmo quando ele está na escola.

Mas, a foto que mais amo, é aquele em que ele está vestido com uma camisola lavada, com o saco gigante de pipocas na mão e a lata de Pepsi na outra.

Nessa foto, ele olha-me, sem que eu lá tenha estado, com uma ternura, que me faz lembrar dele, todos os dias na minha vida.

A segunda-feira começava com uma alteração.

O “café da manhã” estava marcado para as seis.

Nesse dia não houve corrida.

Depois de tudo o que tinha vivido de véspera, estava morto, parecia ter sido física e mentalmente atropelado.

Mas, estava incomensuravelmente feliz.

A partir desse dia tudo mudou, como num passe de um mago.

Tudo.

Tudo deixou de me incomodar, até o suor, constantemente agarrado à minha camisola de alças e a mim.

A partir daquele momento eu era verdadeiramente uma personagem da minha própria reportagem.

Estava em processo de transformação.

Tinha-me deixado envolver, quase incondicionalmente.

A alvorada, na segunda feira, estava marcada para mais cedo do que o habitual.

A caravana tinha uma viagem de oito horas para fazer.

Destino: Chicualacuala, primeiro, Bóbóbó, depois, Maheyisse, a seguir, depois seguíamos para um outro acampamento, em Dingue, uma aldeia sessenta quilómetros dentro da savana.

Aí ficaríamos a dormir. O banho era tomado de caneca, pois não há água naquela aldeia, há muitos anos, naquela região, há um rio, mas está seco. Ironia.

Nessa noite, nessa madrugada, antes de partirmos, o céu chorou, muito, chorou num dilúvio, que deixou a estrada, que é acompanhada da linha férrea que liga Maputo ao Zimbabué, completamente intransitável.

A gigantesca trovoada impediu a ida da caravana até Dingue.

E, ainda bem.

Por duas razões.

A primeira, sou levado a pensar que ia desistir, ia fraquejar, se lá tivesse estado, de acordo com os relatos.

Em Dingue, as pessoas alimentam-se de raízes, de animais desidratados, ratazanas, lagartos, insectos, em Dingue, as pessoas bebem água do rio seco.

Escavam a terra e tiram uma caneca de água salubre, alaranjada.

Moem uma raiz amarga e, isso é a sua refeição diária. À vez. Um dia um, o outro dia o outro.

Em Dingue só se come quando, uma vez por mês, por causa da distância, a FSF faz chegar alimentos, mantimentos, água, que duram o resto do mês, até que acabam.

Chegar lá é uma viagem ao inferno, onde vivem pessoas como nós.

Belmiro já chegou a ver camiões virados, na estrada de lama, depois das chuvas.

Por um lado, eu não teria resistido na aldeia da sub-condição humana.

Por outro lado, aquela chuvada permitiu-me viver mais uma experiência que ficou cravada na minha alma, mais um enorme ensinamento.

Como raramente dormi uma noite completa, não me custou ajudar a evacuar a tenda, fugimos com tudo para dentro de uma das salas de aulas.

A noite corria, a chuva intensificava-se. Estava quente.

Enquanto a chuva caía, o terreiro ficava cada vez mais alagado. Nas cabanas de colmo havia movimentações, mas nada de pressas ou pânico.

Na sala de aula improvisada para dormitório quase todos dormiam.

Eu perguntava como era possível dormir com aquela chuva toda.

De repente, eu, a Dani Gimenez, o Derley e a Janaíne éramos uma ilha. A água tinha alagado o terreiro, à nossa volta parecia haver cheias, um mar pouco mais que raso.

Quanto mais chovia, mais cercados estávamos.

Demos gargalhadas. Vimos a aflição de uma galinha com as suas crias, durou uma hora, a aflição da mãe a tentar colocar as filhas a salvo da enxurrada.

Aquilo só terminou porque a (...) deu um salto e, assustadas, a galinha e as crias ganharam asas e voaram até terra firme, mesmo ali ao lado.

A chuva só parou depois do pequeno almoço.

Incrível ver as mulheres da aldeia, às cinco da manhã, a iniciarem as suas tarefas dentro do centro, cozinhar, arrumar, limpar, acartar, preparar, tudo na mesma rotina de sempre, debaixo de um temporal, como se a chuva não existisse.

Tive saudades da minha cama.

Ainda bem que choveu muito, assim não tive que ir à aldeia mais longe de todas as aldeias.

Ocupámos o dia a visitar várias aldeias que não estavam no programa.

Sempre no mesmo registo, recebidos em festa, doações, dentes, comida, sorrisos.

Mas, registos idênticos podem guardar histórias que nunca mais se apagam.

Dei-me uma espécie de folga a mim mesmo.

A chuva grande alterou a agenda, o trabalho estava a correr bem, era momento de tirar umas horas.

Combinei com o Belmiro ir a Chokwé, matar saudades dos pregos, depois de dormir e descansar.

Foi isso, um meio dia de descanso, um dia, vá.

Por isso não assisti ao começo daquilo que momentos antes era um fim.

Na volta para Muzumuia a caravana abrandou.

Debaixo de uma árvore uma mulher. Amamentava uma criança.

Não estive lá, mas tive acesso ao vídeo.

Tinha acabado de dar à luz. Esta a amamentar, a criança ainda tinha pedaços de placenta agarrados a si.

Uma obstetra que seguia na caravana saltou do autocarro e prestou-lhe assistência.

O vídeo é fantástico.

No dia seguinte a caravana voltou lá.

Eu também fui.

Pedro, a mulher e os dois filhos pequenos, em nome da caravana, foram dar comida, água e roupa para a mãe e para a criança.

Viviam onze pessoas naquelas quatro paredes de lama seca. Imaginei-os todos a fugir da chuva, na noite anterior, ali dentro daquele pedaço de nada.

“O que comeu desde ontem?” perguntou Pedro à mãe.

“Um chá”.

“Não pode, tem aqui comida para si e para a bebé”, disse Pedro, um agricultor do Sertão Baiano, habituado à aridez e à falta de bens materiais.

Dorinha, assim se chama a menina, em homenagem à caravaneira que lhe pegou ao colo pela primeira vez.

Pedro Onofre é um homem doce, agricultor, dono de uma empresa, decidiu ir para Muzumuia durante três meses.

Foi na mesma caravana em que nós fomos.

Com ele levou a mulher, ela chama-se Nerissa Carnelos, é uma mulher linda e uma mãe fantástica.

Com eles foram os filhos, pequenos, a Laurinha e o Dani.

“Quando chegámos, as crianças abraçaram os meus filhos, nunca tinham visto meninos brancos. Quiseram tocar-lhes, sentir-lhes o toque, a pele, e não há nada mais transformador que assistir a isso, e ver os meninos brincando, como se tivesse crescido juntos”, confidencia-me Pedro.

Pedro ficou 90 dias em Muzumia, com a família, para montar uma pequena operação de desidratação de fruta e vegetais, para assim os alimentos poderem chegar aos destinos mais longínquos, com cerca de 10 porcento do peso inicial.

Depois basta colocar na água a ferver.

Também desenvolveu a agricultura familiar, de pequena escala, através de métodos adaptados.

Pedro, surpreso, aprendeu em encurtar o ciclo da mandioca para metade do tempo.

Mas, naquelas aldeias é a água ou a falta de água que ombreia com a fome.

Pedro Onofre prometeu e fez;

Criou vários poços, a baixo custo, com material artesanal, tão artesanal como uma roda de bicicleta, e a água já jorra, em três meses, em muitas das aldeias.

Onde há água há comida. Onde há comida há vida.

Os poços (apadrinhamento estrutural) são de baixo custo, por isso suportados por padrinhos.

O primeiro poço do projecto foi apadrinhado pelo acto brasileiro Reynaldo Gianecchini, que visitou as aldeias algumas caravanas depois da nossa.

No mês de maio/abril partiram pelo menos quatro caravanas.

Em sete anos, Wagner Moura sonhou um mundo melhor, onde pertence agora.

Em três meses esse mundo voltou a alterar-se, graças a Pedro.

Já se vê milho, trigo, tomate, couves, alface, cebolas.

Já se vê crianças a brincar debaixo do jorro de água do poço.

Há cada vez mais vida.

Mas há morte.

E, vida, até lá.

As crianças e os jovens são amparados, mas os mais velhos também.

Gente que não sabe a idade, mãos e pés deformados pela vida, olhares turvos, sem dentes, dormentes.

Chamam-lhes vóvós ou vôvos.

Conheci uma dessas vóvós.

A casa onde vivia tinha menos uma parede, que abateu aquando das chuvas.

Ao lado, uma casa nova, dádiva de um(a) caravaneiro(a).

Ela quase não se move, quase não vê, acredito que não veja, as mãos tremem muito, ao ponto de falhar o pedaço de xima que tenta levar à boca.

Duas meninas, adolescentes, lavam-lhe as mãos, levam-lhe a comida, todos os dias.

“Desde que começamos a envolver os velhinhos no nosso projecto, nunca mais passaram fome ou ficaram sozinhos. As meninas da aldeia, aos pares, cuidam dos seus velhinhos, todos os vias, visitam-nos, ajudam-nos, levam-lhe comida”, diz-me Wagner, com enorme sorriso.

Ela não se lembrava da idade, só da fome, da dor, de um mundo, o seu, que nunca nenhum de nós jamais ousou viver nele.

“Sabe, Quaresma”, disse-me Wagner;

“Uma vez conversando com essa vóvó, ela disse-me que queria agradecer-me.

Perguntei porquê.

Respondeu-me: "Porque comer todos os dias é muito bom, mas ter companhia e poder conversar é melhor ainda”.

Apesar da fome, no início de tudo, eu acredito neles.

Acredito que em cada fim há um começo.

Como nesta história interminável e bela.

José Gabriel Quaresma

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